segunda-feira, 21 de março de 2011

Pega Mata e Come

Entre tsunamis, inflação descontrolada, guerras e emergência atômica - o assunto da semana na twitteresfera brasileira foi o "blog milionário" da cantora baiana Maria Bethânia. A notícia (leiam aqui) provocou candentes e apaixonadas reações, a maioria contrária ao projeto e até mesmo hostil à artista (veja-se, por exemplo, aqui e aqui).

Não tenho qualquer predileção pela cantora em questão, apesar de reconhecer seu talento e merecido sucesso (aqui e aqui se alguém desejar saber o que penso das cantoras brasileiras), mas sinto que, bode expiatório, tem sido vítima de linchamento moral e "macarthismo" e de ambos os lados do espectro ideológico. A mim me incomodam mais as críticas que vem dos setores incrustados no aparelho do estado desde 2003, sobretudo porque, demagógicas, buscam alcançar objetivos inconfessáveis (essa turma ligada à "cultura" já havia sido objeto de duras reprimendas deste bloguinho aqui e aqui).

Creio que o grosso das críticas decorre de vasta desinformação ou ignorância dos mecanismos legais utilizados para financiar projetos culturais no Brasil. O ponto de inflexão é o governo Collor: antes dele um conjunto de mecanismos estatais (Fundos, empresas e outros organismos estatais do setor cultural) de apoio; depois a chamada Lei Rouanet - entre os dois um vácuo que praticamente extinguiu as atividades culturais no país... Qual era a lógica? O que era estatal era considerado ineficiente, caro e corrupto. Deveria, pois, ser substituído pelo setor privado. O mecanismo pensado para fazer essa substituição foi a lei que ganhou o apelido do importante intelectual (Rouanet); através de incentivos fiscais às pessoas físicas e empresas que investissem em cultura. A idéia-chave era entender a cultura como atividade econômica e usar o marketing cultural como chamariz para as empresas.

Ao longo dos últimos 20 anos este foi o mecanismo responsável por financiar cerca de 70% de toda a atividade cultural brasileira (o resto, cerca de 30%, é financiado diretamente pelo governo) em âmbito federal. Significa algo como R$ 1 bilhão por ano. É, portanto, um estrondoso sucesso! Tanto, que a experiência repetiu-se em escala estadual e municipal. Será que há imperfeições na lei? Certamente! Será que houve desvio de propósitos ao longo dos 20 anos de existência do mecanismo? Muito provavelmente! Mas o que revela a repercussão do caso Bethânia vai muito além da chamada "crítica construtiva". De um lado os velhos opositores da influência do mercado no setor cultural; estes que, ao longo dos últimos 8 anos, tentaram sem sucesso (e por incompetência) acabar com a lei Rouanet. De outro, setores contrários ao atual governo, que vêem no episódio uma chance para tirar uma "casquinha", sem atentarem para o fato de que fazem o jogo dos que endeusam o Estado...

O que está em jogo não é o mérito da cantora, nem muito menos o seu projeto um tanto canhestro. O que está em jogo é o financiamento da atividade cultural com alguma interface com o setor privado ou inteiramente dependente do Estado. Não há outras alternativas colocadas à mesa. Nesse caso eu me alinho aos que defendem o mecanismo de incentivo fiscal em detrimento da ingerência estatal.



Passemos então às principais críticas apresentadas que, repito, derivam basicamente da desinformação, demagogia ou má fé de seus autores. Considero que a grande maioria se enquadra no primeiro aspecto; deixarei claro quando não for o caso:


1. A cantora, bem sucedida, não precisaria de incentivos, sobretudo dinheiro "público"
A premissa é falsa, a lei não distingue entre bem ou mal sucedidos; vale para todos, democraticamente. Imagino que quem compartilhe desse argumento também concorde que os "ricos" não tenham devolução do imposto de renda, afinal eles "não precisam"...


2. A famosa cantora compete com novos "talentos"
Esta a idéia central que norteou a (falta de) política cultural nos anos Lula e o argumento má-fé pura!. O mercado (leia-se a Lei Rouanet) só se interessa por gente famosa. do eixo centro-sul. Bethânia representa bem o estereótipo. Mas quem deve dizer o que é um "talento"? O governo ou o mercado? Por que um empresário (ou empresa) financiaria um projeto definido pelo governo e não por ele? E por que haveria de financiar o "grupo de forró de Quixeramobim" ao invés da cantora de primeira linha?


3. O dinheiro é "público"
Aqui, além da desinformação, há clara conotação demagógica. Em primeiro lugar ele só seria público se fosse efetivamente recolhido aos cofres e não há nenhum motivo concreto para supor que o fosse. O sistema tributário mais escalafobético do planeta permite um sem número de manobras e jeitinhos que até criou uma nova ciência: a administração tributária. Segundo, a renúncia não é da totalidade dos recursos empregados, mas de 40% das doações e 30% dos patrocínios, sempre restrito ao limite de 4% do imposto devido (no caso de pessoas jurídicas). Terceiro, esses recursos competiriam com outras demandas mais "nobres": educação, saúde, moradia... Ora, os recursos totais da Cultura representam algo em torno de 1% do Orçamento Federal... Mas o mais curioso: por que não reclamam com a mesma ênfase dos recursos subsidiados pelo Tesouro e emprestados pelo BNDES à grandes empresas? Esses são públicos mesmo!


4. Em outros países a cultura gera impostos ao invés de consumi-los
Apenas nos EUA isto é parcialmente verdadeiro; em todo o resto do planeta - inclusive nos países mais ricos e desenvolvidos - a cultura depende, em grande medida, de subsídios diretos ou indiretos. E desde sempre: basta lembrar da estreita relação entre arte e poder ao longo dos tempos. Por exemplo, não fossem os mecenas (e a Igreja) e a Renascença ainda estaria por acontecer...


5. Há falta de "critérios"
Variação pretensamente sofisticada do argumento 2 acima, busca uma cartilha para o eminentemente subjetivo: o que e quem deve merecer incentivo! Não há resposta para a questão; a lei, democrática, deve ter validade universal e quem define o mérito é quem financia o projeto, garantidos (aí sim) os critérios técnicos e legais correspondentes. Ora, da forma como está é o mercado quem escolhe, depois do aceite técnico do Minc. Foi o que ocorreu com o projeto da cantora e com outros milhares que devem também ter sido aprovados nesse período...


6. Os valores requisitados são "absurdos"
Aqui uma inversão na relação de causalidade. Parte-se do pressuposto de que o projeto esconde algum tipo de fraude ou malversação. Se a Comissão Avaliadora aprovou é ela quem deve se responsabilizar pelos termos da aprovação. E se houver, de fato, algum tipo de fraude ou malversação, compete aos mecanismos de controle estatal (Ministério Público, Tribunal de Contas, Controladorias, etc.) fazerem o seu trabalho. Isto é muito diferente da rejeição subliminar do projeto!


7. O mérito do projeto é discutível
O fato de o projeto cingir-se a uma mídia virtual e versar sobre poesia parece ter tido forte impacto na reação dos críticos. Voltamos aqui ao âmbito subjetivo de valor artístico: aparentemente as pessoas valorizam pouco o tema e o formato (eu mesmo usei nesse bloguinho a expressiva voz da cantora recitando os versos de Pátria Minha, de Vinícius de Morais: aqui) . Ora, o mercado (financiador e consumidor) rejeite o projeto e estamos conversados...


8. Há um jogo de cartas marcadas e concessão de privilégios
Não há o que discutir: faça-se a denúncia formal ou cale-se o bico! De todo modo ficará bem mais fácil armar novos jogos de cartas marcadas e farta distribuição de privilégios, se a coisa se resolver apenas no âmbito do governo. Sem falar no risco efetivo de controle da liberdade de consciência e expressão!



Há também os que defendem a cantora e seu projeto, mas mesmo estes o fazem com ressalvas à lei de incentivo cultural, considerando-a um estorvo ou uma humilhação à qual estariam submetidos os "artistas". A Lei Rouanet virou, de repente, a Geni da música, recebendo bordoadas de todos os lados. Seus algozes assemelham-se um pouco ao carcará (Polyborus plancus), também conhecido como águia-brasileira. A rigor não é propriamente uma águia, mas um falcão. No entanto, diferentemente deste não é um predador especializado e sim um generalista e oportunista. Na verdade está mais para urubu:

Roney Maurício

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